terça-feira, 10 de agosto de 2010

ATUALIZAÇÕES MÍTICAS E FRAGMENTAÇÕES IDENTITÁRIAS: ESPECULAÇÕES

Para citações: MACENA-GOMES, Nayara. Atualizações míticas e fragmentações identitárias: especulações pós-modernas em Body of Glass, de Marge Piercy. In: III ENPOLE, vol. 3, 2010, São Cristóvão. Anais Deslocamentos culturais, São Cristóvão: NPGL/UFS, 2010, 1 CD-ROM,  ISSN 2176-4956.


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     Em A teoria do romance, Lukács (2000) discorre sobre o surgimento dos gêneros literários partindo da caracterização do universo grego, em um tempo em que não havia filosofia e todas as explicações apoiavam-se nos mitos. Nitidamente hegeliana, a abordagem do tema revela como o rompimento com um mundo unitário e harmônico, onde o homem se reconhecia, possibilitou o surgimento do romance.

Segundo o autor, o mundo grego era calcado na totalidade e não havia espaço para dúvidas. Deste contexto nasce a épica, gênero que reflete o modo de pensar do homem da época, o qual vivia em uma estrutura harmonicamente fechada. O desaparecimento desse gênero, conseqüentemente, deriva do “desencantamento do mundo” [1], como aponta Ianni (2010).

A epopéia expressa uma totalidade fechada em si, enquanto o romance, gênero que se origina de uma época em que essa totalidade não é mais evidente, representa a busca pela homogeneidade perdida. O homem representado na primeira forma está em perfeita harmonia com o espaço habitado, ao passo que, na segunda, entre o indivíduo e mundo há uma cesura.


O mundo moderno, por contraste, é imensamente complexo, fragmentado e desorganizado por incontáveis contradições. É a este mundo que a era do romance pertence. O romance está essencialmente preocupado em descrever o ofício de um indivíduo em busca de alguma totalidade,

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 coerência, identidade, cuja imagem ele carrega em si . (ZÉRAFFA, 1976, p. 89 - 90) [2]


O fim da idade épica inaugura, assim, “um processo intrincado, atravessado por impasses e perspectivas, em geral surpreendentes” (IANNI, 2010), intensificado pela Renascença e pelo Iluminismo. O desencanto do mundo moderno, entretanto, fez surgir um processo de re-encantamento, que pressupõe, destarte, novas implicações em relação ao ser e aos princípios. A posição do indivíduo, cuja figuração torna-se fulcral nesse novo universo, é uma das principais questões da modernidade e daquilo chamado de pós-modernidade por algumas perspectivas teóricas.

As diversas formas de ser representado socialmente e as relações que este sujeito estabelece aparecem nas artes e se revelam, muitas vezes, ainda de acordo com Ianni (idem), “mitos” ou suscitam “mitologias”. O indivíduo é, portanto, a principal imagem tanto das realizações e fantasias da modernidade quanto das descrenças do pós-modernismo.

Embora distribuídas em diferentes gêneros, as produções literárias podem revelar diferentes visões de indivíduos e coletividade, bem como mitos e arquétipos.

Frye (2000) explica que “o mito é e sempre foi um elemento integrante da literatura” (p. 28). Para o autor, o mito vai além da definição formal de Andre Jolles (s/d), que o entende enquanto forma simples, algo que se encerra “perfeitamente em si mesmo [...] e lugar onde o objeto se cria a partir de uma pergunta e de uma resposta” (p. 91). Frye (idem) percebe que, assim como outras formas, os mitos também se atualizam e não reconhecem os limites estabelecidos entre lenda e história real.

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Porém, “as coisas que acontecem no mito são coisas que acontecem apenas em histórias; elas estão em um mundo literário auto-suficiente” (p. 38), mesmo que, quando comparados a contos populares, se acredite que essas coisas “realmente aconteceram” (p. 39), como se explicassem alguns aspectos da vida.

Os mitos literários, por sua vez, divergem das formas simples de Jolles (s/d) por constituírem criações cujos enredos básicos são reconhecidos dentro de uma tradição cultural sem a necessidade de resolver questionamentos humanos.

O que singulariza essa geração de mitos literários [grifo da autora] é que seus autores não têm dimensão que estão criando mitos; o que assim os define é a capacidade que possuem de encarnar valores culturais e estéticos não apenas significativos para a sociedade primeira que os recebe, mas também para as sociedades posteriores, que terminam por atualizá-los no corpo de novas produções literárias. (CAVALCANTI, 2008, p. 1) 

A compreensão do mito, entretanto, só é possível quando há unidades comunicativas, que Frye (1957) denominou arquétipos, isto é, imagens típicas ou recorrentes que integram a experiência literária. “Alguns arquétipos [por exemplo] estão tão profundamente fincados em associação convencional que mal podem evitar sugerir tal associação, a exemplo da figura geométrica da cruz que inevitavelmente sugere a morte de
Cristo (p. 102) [3].
 
Essas associações fazem parte de um enorme conjunto que é compartilhado por pessoas de mesma cultura e são entendidas (ou comunicáveis, para usar o termo de Frye) pelo que representam para determinado grupo. Alguns símbolos podem, até mesmo, ser usados como princípios estruturais, como as imagens de ilhas e oceano representadas no modo utópico, que muitas vezes, é confundido com mito.
estéticos não apenas significativos para a sociedade primeira que os recebe, mas também para as sociedades posteriores, que terminam por atualizá-los no corpo de novas produções literárias. (CAVALCANTI, 2008, p. 1)

A compreensão do mito, entretanto, só é possível quando há unidades comunicativas, que Frye (1957) denominou arquétipos, isto é, imagens típicas ou recorrentes que integram a experiência literária. “Alguns arquétipos [por exemplo] estão tão profundamente fincados em associação convencional que mal podem evitar sugerir tal associação, a exemplo da figura geométrica da cruz que inevitavelmente sugere a morte de
Cristo (p. 102) [3].

 
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Isso se deve, sobretudo, à acepção do mundo em que o mito, enquanto forma, surgiu. Dessa modo, o mito como “representação idealizada de um estado da humanidade, tanto no passado, como num futuro fictício” (HUBNER, 1997, p. 07) remete à fantasia, a idealização e a realização num futuro imprevisível.

A confusão entre mito e utopia jaz também no apelo ao passado mítico da obra de More, a qual alude à fundação de Atlântida, e na paralisia temporal, cuja “ausência de crise confere ao modelo um caráter pré-histórico” (idem, p. 8).

As mudanças sociais que irromperam durante a Idade Moderna e a Revolução Industrial ofereceram novas ferramentas de especulação sobre o futuro e suscitaram um imaginário cientificista, cujas principais influências são o gótico e o horror do Romantismo.

Na idade moderna, a Revolução Industrial acelerou as mudanças sociais, que ofereceram novas ferramentas de especulação sobre o futuro, e suscitou um imaginário cientificista, cujas principais influências são o gótico e o horror do Romantismo.

O ar sombrio, o estranhamento, o sobrenatural e o etéreo fazem parte da literatura gótica do final do século XIX e estão ligados à rápida industrialização, ao enfraquecimento dos laços de família patriarcal e ao questionamento dos valores aristocráticos.
Em decorrência desse contexto histórico, dos meios que se prestam ao conhecimento humano e/ou a atuação humana em um mundo regido pelas normas divinas, personagens que enfrentavam a própria condenação para contornar as limitações impostas tomaram importância no universo literário e encontraram na figura do Fausto o modelo típico do personagem representativo das pulsões do ser humano moderno.
Atualizado em Victor Frankenstein, o personagem fáustico de Mary Shelley também é representado em sua inteligência e arrogância, obcecado pela ideia de superar as barreiras do conhecimento humano. Com o objetivo de criar uma nova forma de vida à sua própria semelhança, o dr. Frankenstein se tornou um arquétipo do cientista maluco produzido pela modernidade, cuja forma, na literatura, é afetada pelo senso de crise.

Sheenan (2004) explica que essa crise surge da incapacidade da forma tradicional do romance para representar “o senso de ruptura e disjunção, a dissolução de certezas” (p.

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14) da modernidade [4]. A forma tradicional para o autor é explicada pela observação de Malcolm Bradbury, que a entende como “a épica burguesa, o romance da realidade social, avaliação moral, representação direta [sic] da vida e da história” [5] (idem).

Ainda de acordo com Sheenan (2004), “a crise modernista no romance sugere o restabelecimento do dilema que produziu o Bilungsroman” (p. 14) [6]. O conflito central trata da tensão entre a inextensão da mente e a extensão da substância e aparece nas ficções través da narrativa ao perturbar a coerência formal até então vigente. Em Frankenstein, a história é contada por meio de cartas que um capitão, preso no gelo em direção ao polo norte, escreve para a irmã e conta a história de um estrangeiro que encontrou perdido na região. A narrativa do capitão Walton é entrecortada pelo relato do estrangeiro e pelas cartas escritas por este.

Sheenan (2004) defende que isso leva o leitor a estabelecer laços provisórios com os narradores, o que põe em xeque o contrato de suspensão da descrença; a rede de narrativas, a suspeita em relação ao que está por vir traduzem a crise moderna no romance de Shelley. Além disso, a falência do personagem central demonstra a falibilidade humana em seus empreendimentos, sejam elas a produção de novas formas de vida, viagens ao polo norte ou a tentativa de contar histórias cuja forma represente com fidelidade a vida.

A atualização do mito de Fausto em Frankenstein revela “um tipo singular de intertextualidade” (CAVALCANTI, 2008, p. 2), que remete à forma como a literatura é construída – sempre retomando arquétipos e mitos, sem necessariamente repetir os enredos originais. As atualizações literárias, muitas vezes, traduzem e suplementam essas imagens de acordo com o contexto da nova produção.

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Nesse contexto dialógico, o romance de Mary Shelley tornou-se um mito arquetípico sobre a obsessão e a possibilidade de conhecimento, além de funcionar como uma metáfora moderna para o conceito de indivíduo cindido. As narrativas relacionadas prevalecem como imagens universais dos mitos sobre o conhecimento e são também atualizadas em outras obras, em sua maioria, ficções científicas, como as obras de H.G. Wells e Isaac Asimov.
 
Sob um novo olhar a respeito dos conceitos de humanidade, subjetividade e conhecimento, o romance de Marge Piercy – Body of Glass (1992) – revisa os mitos acima relacionados a partir da especulação sobre o conceito de pós-modernismo, aqui entendido não como a disposição atual da cultura moderna, mas como uma possibilidade produzida por meio das realidades construídas pela literatura.

Klages (2007) explica que o conceito de pós-modernismo surgiu a partir do movimento estético do modernismo e da crítica feita à mentalidade cientificista e objetiva da modernidade. Para a autora, muito do que se entende por modernismo e pós-modernismo se confunde no tocante a questões como identidade, unidade e conhecimento. A diferença, segundo ela, residiria na forma como esses conceitos são percebidos: as cisões identitárias são consideradas desordens para o modernismo, enquanto o pós-modernismo trata dessas questões considerando os critérios de diferença, pluralidade, textualidade e ceticismo (skepticism, no original).

O conhecimento, dentro desses dois modelos, é encarado de modos diferentes: no modernismo, ele foi igualado à ciência, como em Frankenstein, por exemplo; no pósmodernismo, a preocupação repousa sobre a forma como esse conhecimento é organizado. Em Body of Glass (1992) [7], a representação da ciência não está mais ligada à imagem fáustica primeira – de ousar saber e padecer – mas ao fim destinado ao conhecimento, que

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é distribuído, estocado e organizado de maneira diferente, em decorrência, principalmente, das novas tecnologias que regulam todos os aspectos da vida em sociedade descrita.

Nas sociedades pós-modernas, qualquer coisa que não pode ser traduzida para uma forma reconhecível e armazenável por um computador, i.e., qualquer coisa que não seja digitalizável, deixará de ser conhecimento. Nesse paradigma, o oposto de “conhecimento” não é “ignorância”, como ocorre no paradigma moderno/humano, mas “ruído” [que] não é reconhecível dentro desse sistema (Klages, 2007) [8].

Nesse contexto, o romance de Marge Piercy – Body of Glass (1992) põe uma lente de aumento sobre as características que explora para desenhar espaços cuja observação parece sugerir uma gradação de um ambiente distópico a utópico. Essa lente funciona como o primeiro recurso de especulação sobre possibilidades pós-modernas. Ela ajuda a construir a narrativa principal, que descreve, inicialmente, uma sociedade controlada em todos os seus aspectos e que depende do consumo e do descarte excessivos para a manutenção da ordem imperante. “Todos estavam conscientes de serem observados, de serem julgados” [9]. (BG, p. 07)
 
A perspectiva distópica produzida pela narrativa evidencia-se pela tentativa compulsória de padronização dos indivíduos, o que caracteriza um desvio da fragmentação identitária valorizada pela perspectiva pós-moderna.

O contínuo processo de reforma/mudança pode representar, nesta comunidade, uma forma de manutenção da ordem vigente através do descarte. Bauman (2007) afirma que o consumo/descarte constitui condição sine que non para a existência de tal sociedade e constitui “o exato oposto da utopia” (p. 108).

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Para Frederic Jameson (apud KLAGES, 2007), a perspectiva pós-moderna também depende dos estágios do capitalismo para ser entendida. O terceiro estágio caracterizaria o pós-modernismo pelas relações de consumo associadas às novas tecnologias eletrônica e nuclear.

Como forma de manutenção, os dirigentes da Y-S e de outros domos estabeleciam padrões de imagem que simulavam uma “igualdade utópica”, mas, que, na verdade, buscavam o apagamento da alteridade. Além disso, as mudanças estimuladas ratificavam o desejo pelo consumo, e o conseqüente descarte, bem como a apropriação do indivíduo pela corporação.

Esse primeiro lugar descrito no romance é o domo da Yakamura-Stichen, situado em Norika, uma vasta região que se tornou um ambiente tóxico, com vários outros domos controlados por multinacionais, que substituíram as formas de governo de nossos dias.

Fora desses ambientes, a sobrevivência seria praticamente impossível, uma vez que a  camada de ozônio desaparecera, os arrozais e trigais do mundo foram cobertos pelo oceano ou viraram desertos e as pessoas poderiam ser atacadas por traficantes de órgãos.

A maior parte da população vive nas chamadas Glops, áreas extremamente poluídas onde as pessoas vivem de lixo reciclado. Porém existem algumas cidades livres do controle das multi. Elas se situam em zonas instáveis e, por isso, não interessam aos grandes grupos corporativos.

A lente de aumento que funcionou, na narrativa principal, para enfatizar determinados aspectos com o intuito de produzir realidades dentro do modelo pós-moderno salienta a pluralidade dos discursos como mais um dos fatores estruturais da obra, que exprime a fragmentação típica desse modelo por meio da ruptura da narrativa. Esta, por sua vez, produz um subenredo (o mito do golem de Praga) contado em analogia à história principal.

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As funções exercidas pelo ciborgue e pelo golem são cotejadas ao longo do romance, reportando ao arquétipo de Frankenstein. A atualização mítica dessa narrativa associada à análise do discurso pós-moderno corrobora o princípio de que tudo é texto e parte de uma teia interrelacionada. De forma mais simplista, isso é visto na relação de intertextualidade entre as duas narrativas análogas; porém, as histórias entrelaçadas também evidenciam a desconstrução [10] da objetividade do discurso histórico, representado pela própria história do gueto judaico. Ao recontar a história de seu povo, Malkah mostra como a História e a ficção andam juntas.

Além da aproximação entre as funções exercidas pelo ciborgue e pelo golem, pois ambos foram construídos sob o pretexto de defesa, há também ligação entre o mito do golem e a figura histórica do rabino, cujo papel se repete em Malkah, a qual se diz sua descendente.

Em Body of Glass, a evidente analogia entre as imagens do ciborgue e do golem organiza as duas narrativas e se relaciona com o arquétipo da criatura de Frankenstein, mesmo alterando a percepção dos seres criados e seus destinos. Isso se deve ao fato de as atualizações míticas não produzirem simples reduplicações, como explica Cavalcanti (2008).

“Todas as obras literárias, em outras palavras, são ‘re-escritas’, mesmo que inconscientemente, pela sociedade que as lê; na verdade, não há leitura de obra que não seja uma ‘re-escrita” (EAGLETON, 1995, p.12) [11].

Essa re-escrita aparece sob duas formas no romance de Piercy: a narração do mito do golem e da história, comprovada no mundo empírico, do gueto de Praga em 1600 e atualização do mito do Fausto e de Frankenstein.

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Embora as duas narrativas tenham o mesmo fim e se estruturem como uma tragédia, em forma de U invertido, a narrativa principal altera as motivações que mantêm a forma trágica do mito que atualiza.

Na fábula secundária, o gueto de Praga é ameaçado pelos cristãos e o rabino cria um golem para defender seu povo. Se entendermos esse gueto como uma redução do mundo grego, teremos o golem desempenhando a função do herói que, ao final da narrativa, se curva diante da vontade divina, representada, neste caso, pelo rabino que o desfaz quando seu objetivo é alcançado.

Na narrativa principal, a cidade de Tikva aparece como uma nova forma de gueto e o ciborgue como a atualização do golem. O papel desempenhado pelas divindades é representado pela ciência, que cumpre a função de alegoria em relação à religião e ao mito, no tocante à explicação do mundo. A destruição de Yod, entretanto, não se deve ao cumprimento de seu papel. É a sua morte, aliás, que possibilita a segurança da cidade livre.

No primeiro caso, a morte do golem era inevitável, pois seu destino estava atado à vontade divina e seu assujeitamento ao longo da história não lhe garante um lugar no espaço em que foi criado. Na narrativa principal, a morte de Yod acontece devido à vontade própria de um indivíduo que se assujeitou no decorrer da narrativa. A autodestruição desse personagem aparece como um dos recursos discursivos do modo utópico, renovado pela perspectiva pós-moderna para garantir a existência de um espaço melhor. Embora Yod tenha desenvolvido sua identidade a partir de experiências subjetivas, a possibilidade de controlar suas vontades o coloca fora do espaço da utopia preconizada pelo discurso da obra. Seu destino curva-se diante da ciência, que funciona como alegoria em relação ao papel desempenhado pelo divino e pelos mitos no mundo grego.

O espaço de dimensões mais distópicas – a Zona Negra - é apresentada no início como uma mancha negra no mapa devido ao holocausto nuclear. A caracterização desse
 
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espaço ativa historicamente o senso de pós-modernidade ao sugerir a destruição de registros culturais e factuais de um passado fictício que corresponde ao século XX.

Para Lukács (2000), o gênero romance tenta mimetizar a totalidade perdida. Essa totalidade, em Body of Glass, parece efetivar-se na Zona Negra, que tenta reconstituir um lugar de reconhecimento para os indivíduos. O contexto pós-moderno, representado pelas imagens de ciborgues e interface com a informática, sugere a superação do humano e da separação por classes sociais, gênero, profissão e outras categorias, em detrimento da produção de identidades cindidas e inclassificáveis.

Não somente em Body of Glass, mas também em toda a literatura, a revisão dos mitos apresenta-se como forma de composição artística. Para Frye (2000), a literatura é, na verdade, uma malha de arquétipos, como, por exemplo, o mar, um símbolo tão importante que “não pode se restringir à poesia de Shelley, Keats ou Coleridge: [ele] está fadado a [se] expandir para muitos poetas como um símbolo arquetípico da literatura” (FRYE, 2000, p. 18).

No modo utópico tradicional, os símbolos mais recorrentes derivam da obra de Morus, que descreve um espaço insular, cujas características conferem-lhe o status de lugar ideal. Apesar de a Utopia remeter ao “não-lugar”, “relativo à ignorância dos homens” (HUBNER, 1997, p.08) a respeito de sua existência e ao isolamento espacial, a sociedade descrita funciona como o inverso da Inglaterra dos tempos do autor. As utopias, então, funcionariam como uma alternativa idealizada do espaço efetivo.

Esta ausência de crise do modelo utópico torna possível o elo com o mito, uma vez que a estabilidade deste espaço retoma o tempo cíclico dos mitos. A obra de Morus também faz alusões a um passado mítico, as quais lembram, muitas vezes, a fundação de Atlântida.

Em Body of Glass, o papel exercido por Yod, em analogia ao mito judaico do golem, atualiza o passado mítico de Tikva, que deve sua segurança ao sacrifício do ciborgue. O

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isolamento da ilha e o desconhecimento, por parte dos domos, da organização do lugar também reconstituem, em outro contexto, a caracterização espacial da utopia clássica.

Ainda em relação à caracterização geográfica, o romance atualiza o conceito de não-lugar ao localizar a Zona Negra em um continente devastado do outro lado do mar. O aspecto de isolamento mantém-se graças à localização periférica e ao medo dos efeitos nucleares que podem ter restado na região. Em termos estruturais, a narrativa localiza este espaço no não-lugar ao não nos permitir acessá-lo. O romance termina com a viagem da personagem Malkah, que está cega, ao continente. A cegueira aparece, então, como o recurso estrutural da obra para levá-la à Zona Negra. Como apontou Cavalcanti (2007), a ausência/presença desta terra “promove a imbricação perfeita na obra entre sua forma e seu conteúdo ao fazer a ambivalência original do termo cunhado por Thomas More: o bom lugar é o não lugar” (p. 12).

A Zona Negra também atualiza o tempo mítico, que é cíclico e se afirma num passado ingênuo, superado com o advento da filosofia. O tempo cíclico da utopia, por sua vez, efetiva-se num futuro que sempre está por vir. A ingenuidade, porém, não tem mais lugar quando a busca pela unidade termina, pois a artificialidade das relações mediadas pela tecnologia e dos sujeitos extremamente cindidos é denunciada tanto pelo discurso pósmoderno da obra quanto pela narrativa que apaga os personagens que, mesmo fragmentados, mantém algum tipo de cesura com a totalidade utópica.

Somente têm acesso à terra ideal as personagens que superaram a individualidade e construíram subjetividades baseadas na impossibilidade de categorização. O estar fora da narrativa, característico desse espaço, e a evidente fragmentação geográfica são sintomas do gênero romance, que se firma na ruptura entre o sujeito e o mundo na busca pela unidade perdida.

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Notas:

[1] O conceito de “desencantamento do mundo” (entzauberung der welt) citado por Ianni (2010) foi pensado por Max Weber. Souza (2006) explica que “a mudança da visão mágico-mítica para uma visão racionalizada apoiada na imagem metafísico-religiosa do mundo” permitiu uma nova forma de ver o mundo.
[2] Todas as traduções do inglês são minhas, exceto aquelas listadas nas referências. Trecho original: The modern world, by contrast, is immensely complex, fragmented and disrupted by myriad contradictions. It is to this world that the age of novel belongs. The novel is essentially concerned with describing the career of an individual in search of some totality, some coherence, some identity, whose image he carries deep within himself.
[3] Trecho original: Some archetypes are so deeply rooted in conventional association that they can hardly avoid suggesting that association, as the geometrical figure of the cross inevitably suggests the death of Christ.
[4] Trecho original: sense of rupture and disjuntction, the dissolution of certainties.
[5] Trecho original: the burgher epic, the novel of social reality, moral assessment, direct representation
of life and history.
[6] Trecho original: The modernist crisis in the novel implies a reenactment of the dilemma that produced the Bildungsroman.
[7] Referências a esta obra, em citações, serão feitas com a abreviação BG, seguida do número da página.
[8] Trecho original: In postmodern societies, anything which is not able to be translated into a form recognizable and storable by a computer--i.e. anything that's not digitalizable will cease to be knowledge. In this paradigm, the opposite of "knowledge" is not "ignorance," as it is the modern/humanist paradigm, but rather "noise” [which] not recognizable as anything within this system.
[9] Trecho original: Everyone was too conscious of being observed, of being judged.[10] Conceito pensado por Derrida para demonstrar a multiplicidade de leituras que podem ser realizadas a partir de um texto.
[11] Trecho original: All literary works, in other words, are “rewritten”, if only unconsciously, by the society which read them; indeed there is no reading of a work which is not a “re-writing”.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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